quinta-feira, 4 de junho de 2009

"Fé demais não cheira bem"

A frase-título dá nome a uma comédia, mas a experiência que tive na última semana não teve nada de engraçado...

Peguei um mandado de despejo no mês de abril e, como sempre faço, fui à casa da pessoa para avisá-la de que estava com a ordem judicial em mãos, e que esta seria cumprida assim que o proprietário da casa fornecesse os meios (caminhão, carregadores, local para guardar os bens).

Não havia ninguém em casa e deixei um cartão embaixo da porta, para que ela entrasse em contato comigo. Escrevi no cartão a palavra que a faria entrar em contato: "Despejo".

No mesmo dia ela me ligou. Só que me ligou para falar, e não para ouvir. Disse-me com toda convicção que não sairia do imóvel, porque ela era "fiel a Deus, e Ele não deixaria que isso acontecesse"... Informei-a de que estava dependendo do proprietário do imóvel, e que ela deveria providenciar ao menos um local para transporte de suas coisas.
Decorridos 15 dias, como não houve contato por parte do proprietário, devolvi o mandado sem cumprimento.

Na última semana de maio, recebi de volta a mesma ordem; mas dessa vez o advogado do proprietário entrou em contato no mesmo dia, afim de marcarmos o cumprimento da ordem.
Telefonei para a mulher (vou chamá-la aqui de "Jane") avisando-a de que dessa vez a ordem seria cumprida e que já havia data: 03 de junho.
Novamente fui bombardeada por frases inflamadas, agressivas até, dando conta de que "Deus é maior do que isso", "Nada me tira daqui viva", "Seja o que Deus quiser" etc

Fui até o cartório para analisar o processo (afinal, peguei-o já "andando" e nada sabia sobre o caso).
Jane estava no imóvel há pelo menos 3 anos (e há 2 anos, não pagava o aluguel de R$ 150,00).
Foi notificada a desocupar o imóvel em janeiro deste ano (tinha 15 dias para fazê-lo voluntariamente).
Em abril, eu a avisei da ordem, mas devolvi o mandado sem cumprimento por falta de contato com o proprietário... Ou seja: 2 anos sem pagar o aluguel, e avisada desde janeiro!!!

Na véspera do despejo, estive novamente no local, na esperança de que Jane tivesse compreendido a gravidade da situação e tivesse retirado suas coisas voluntariamente. Novamente não a encontrei, mas suas coisas continuavam ali...
Telefonei, e ela me atendeu desconfiada, mas ainda na esperança de que nada aconteceria, afinal "Deus é justo; e Ele sabe das coisas". Nessa hora eu tive que responder... Disse a ela que Deus é justo mesmo... e que não poderia ajudar uma pessoa que está há 2 anos sem pagar aluguel e nada faz para modificar a situação.
Ela ficou muito brava; disse que eu deveria ir à igreja "tal", pois lá está a verdade. E que ela não deixaria ninguém colocar as mãos nas coisas dela; e que ela é parente de pessoas da Polícia Federal etc
Vi que era um caso sem volta... Insisti com ela que o despejo ocorreria no dia seguin te e que ela deveria arrumar ao menos um lugar para levar suas coisas...

Como você já deve ter previsto, ontem estivemos lá (eu, proprietário, advogado, carregadores e... polícia militar!) e o despejo ocorreu. De início ela resistiu, mas quando viu que não havia outro jeito, abriu a porta do imóvel (um "quarto e banheiro", na verdade). Como já era de se esperar, não arrumou lugar para as coisas, que foram levadas para um depósito. O resto (louças, roupas, e outras miudezas) ela foi distribuindo entre os vizinhos (não entendi se as doou, ou vai voltar para buscar depois).
Por todo lado havia coisas da tal igreja: o relógio de parede, jornaizinhos, quadros. E no painel do celular, a mensagem: "Deus é poder".
E então percebi que o que levou a mulher a este estado foi o excesso de fé, ou, na verdade, o que ela acha que é FÉ!!! Até o último instante, ela acreditou que ocorreria um milagre. Ela acreditou que Deus ajuda aos pobres, gratuitamente, e que nada precisa ser feito! Acreditou que basta ter fé e ser fiel...

Ao dormir, numa noite tão fria, fiquei imaginando onde estaria aquela mulher... Seus móveis foram para um depósito; o colchão ela jogou fora, pois era realmente muito velho... Será que foi para a casa do filho? ("ele é casado, tem a vida dele" - palavras de Jane); será que foi pra casa de um vizinho? Será que a igreja que ela tanto defende a acolheu? E lembrei que ela não tinha nada naquela noite... Triste, não?

Mas quando penso nas inúmeras chances que ela teve, nos dois anos que ficou sem pagar o aluguel, nas coisas absurdas que ela me disse, chego à conclusão de que a vida nos dá muitas lições, e que devemos aprender com elas!
Minha mãe sempre dizia: "Tudo que é demais, enjoa" e eu adapto: "Tudo que é excesso, não pode estar certo"!
Deus nos ajuda, sim: mas temos que fazer a nossa parte (e bem feitinha, viu?)...
Fé demais, amor demais, ódio demais... só nos faz mal!

Um comentário:

Bianca disse...

Excessos sempre fazem mal nao é?!

Lendo esse episódio fiquei com vários sentimentos me rondando (contraditórios a minha própria opiniao por sinal).

Esse deve ser o lado "chato" da sua profissao. Agir pela lei deixando os sentimentos de lado.

Sabe que esses dias uma pessoa foi mandada embora por causa de um péssimo servico prestado a nós e eu fiquei com o maior sentimento de culpa. Nao era pra mandar o cara embora, só dar um toque... o corretivo podia ter sido mais brando. Mas depois, analisando direitinho, vi que nao dá pra gente passar por cima das coisas, fingir que elas nao aconteceram puramente pela frustracao que as consequencias causarao.

Eu sou bastante racional, mas de vez em quando, o coracao fala mais alto... é fogo!

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